A Narcose dos Gases Inertes
Por Paulo Franco em Revista de Marinha n.º 970 (Janeiro e Fevereiro de 2013)
Em 1947, Jacques Ives Cousteau, descrevia assim uma das suas experiencias de mergulho profundo: “A 60 metros… Agarrei-me estupidamente ao cabo de descida. Ao meu lado estava alguém sorridente e desenvolto, o meu segundo eu, perfeitamente autónomo sorrindo sardonicamente ao pobre mergulhador a seu lado. Conforme passavam os segundos, o homem desenvolto instalou-se no comando e ordenou que eu soltasse o cabo e descesse.”
A Narcose dos Gases Inertes (NGI) refere-se a um síndroma clinico caracterizado pela redução da velocidade na percepção, avaliação e reacção a eventos tendo também reflexos ao nível da disposição mental e comportamento. De facto a NGI tem um efeito semelhante ao de uma anestesia parcial, actuando ao nível das sinapses (espaços entre os neurónios) do sistema nervoso central e modificando a transmissão dos impulsos nervosos. São normalmente considerados como limite de segurança para mergulho com ar os 30 metros de profundidade.
Fig. 1 - Tabela de Potencial Narcótico Relativo dos Gases Inertes em relação ao Azoto (Fonte: http://www.chm.bris.ac.uk/webprojects2002/shorrock/why_some_gases_are_used_and_how.htm)
A primeira observação registada de um sintoma coincidente NGI foi feita por Junod, em 1835 que reportou ”… os pensamentos têm um charme peculiar e, em algumas pessoas, estão presentes sintomas de intoxicação”. Desde então muitos médicos, cientistas e mergulhadores têm dedicado os seus estudos a este fenómeno. Ainda assim o processo conducente à NGI continua sem ser completamente compreendido.
Embora inicialmente e durante muitas décadas se tenha ligado a NGI ao azoto presente no ar atmosférico respirado pelos mergulhadores, esta está de facto associada aos gases inertes, tendo cada um deles o seu potencial narcótico específico. Recentes evidências teóricas e experimentais indicam que o próprio oxigénio tem um efeito narcótico que pode ser três ou quatro vezes superior ao do azoto. Este efeito narcótico dos gases é potenciado pela presença do dióxido de carbono (CO2), álcool, drogas, alguns medicamentos e o cansaço. Descidas muito rápidas têm também um efeito reforçador dos efeitos da NGI.
Fig. 2 - Representação da jocosa “Lei dos Martini”. (Fonte: http://divingpuertogalera.com)
Os sintomas da narcose incluem a dificuldade de assimilação de factos, processamento mental lento e pouco preciso e perda de memória. Sabe-se hoje que a NCI tem também efeito ao nível dos mecanismos fisiológicos de termorregulação. Laboratorialmente, nos estudos acerca da NGI, testam-se processos com o raciocínio conceptual, a compreensão de conceitos, a habilidade aritmética mental e a memória de curto prazo.
Uma das noções presentes ainda hoje entre muitos mergulhadores é a de que a tolerância á narcose se treina e se mergulharmos muitas vezes fundo ganhamos resistência aos seus efeitos. Como qualquer efeito narcótico existe uma grande variabilidade interpessoal à NGI e é empírico que mergulhado sucessivamente a profundidades superiores a 30 metros existe um aumento do conforto por parte dos mergulhadores mas, actualmente, os estudos apontam para que, mais do que um processo de aumento da tolerância, este aumento do conforto se relacione com uma adaptabilidade aos processos e procedimentos, exigindo menos concentração com os detalhes do mergulho e desenvolvimento de automatismos e modos de acção mentalmente mais eficientes que aumentam a disponibilidade e a eficácia no cumprimento das tarefas (por exemplo: processos de analise e reacção genericamente mais lentos).
Fig. 3 - Alterações comportamentais que incluem excesso de descontracção, atitudes atípicas e quebra de regras de segurança são características da NGI. (Foto do autor)
A NCI é assim um fenómeno fisiológico associado à respiração de gases inertes a elevadas pressões parciais. Essa síndrome tem um mecanismo idêntico ao de uma anestesia parcial e faz-se sentir, respirando ar, cerca dos 30 metros, sendo no entanto um fenómeno progressivo que depende apenas da mistura de gases respirada, da pressão parcial e que o mergulhador está sujeito e da tolerância do individuo em causa. Embora a destreza do mergulhador nas suas tarefas seja uma vantagem importante em mergulhos profundos sabe-se que não existe fisicamente uma adaptação com aumento de tolerância aos efeitos da NGI.
Como curiosidade final fica uma regra jocosa usada frequentemente no seio dos mergulhadores para compreensão dos efeitos da narcose, trata-se da “Lei dos Martini” que diz que “a narcose respirando ar equivale ao efeito de um Martini a cada 15 metros”.
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